Literatura.
A IMPRENSA NEGRA.
Bianca Della Nina
No século XIX, antes mesmo da abolição, pelas vias institucionais ou
não, Maria Firmina dos Reis, Antônio Rebouças, Luís Gama, José do Patrocínio,
André Rebouças ilustraram a busca da imprensa e da tribuna como forma de fazer
ouvidas as reivindicações negras do século.
Um dos maiores nomes desta época é Francisco Paula de Brito (1809-1861).
Filho do carpinteiro Jacinto Antunes Duarte e de Maria Joaquina da Conceição
Brito, iniciou sua carreira na adolescência, como aprendiz na "Tipografia
Nacional". Em 1827 é contratado pelo recém fundado Jornal do
Comércio como compositor tipográfico, assumindo mais tarde o departamento
de impressão. No ano seguinte sai do Jornal e adquiri a loja de encadernação e
livros de seu primo. Com as inovações que introduz, como a tipografia, por
exemplo, torna-se o primeiro editor do Brasil. Pouco tempo depois, a Tipografia
Fluminense de Brito & Cia passa a ser ponto de encontro de políticos e
intelectuais como Machado de Assis.
Em 1833 lança O Homem de Cor, primeiro jornal
brasileiro dedicado à luta contra os preconceitos de raça. Paula Brito foi
também poeta, dramaturgo e tradutor. Além disso, é um dos primeiros contistas
brasileiros. Seus contos e novelas são publicados já a partir de 1839. Dois
títulos de peso pertencem a Paula Brito: "o iniciador do movimento
editorial no Brasil" e o precursor da "Imprensa Negra".
Em 1864, Luís Gama inaugurou a imprensa humorística paulistana
ao fundar o jornal Diabo Coxo. Luís
não se acomodava. Por meio da imprensa iniciou sua cruzada contra o escravismo.
Mais tarde, como advogado libertou uma imensidão de escravos. Sud Mennucci o
considera o precursor do abolicionismo no Brasil.
Já no século XX, sofrendo as consequências da exclusão programada
e crescente do mercado de trabalho e da vida social brasileira, intelectuais,
funcionários e operários negros reuniram-se em torno de jornais e associações
com o intuito de promover confraternizações, cursos, festas na tentativa de romper
as barreiras da política cultural da época.
Os negros paulistas, sentindo a necessidade de um
movimento de identidade étnica, e enfrentando as barreiras de uma imprensa
branca (Grande Imprensa) impermeável aos anseios e reivindicações da
comunidade, recorreram à solução mais viável, que era fundar uma imprensa
alternativa, na qual os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a
sua vida associativa, cultural e social se refletissem.
O primeiro desses órgãos foi O
Menelick, que conseguiu grande prestígio na comunidade negra, difundindo
aquilo que
os
seus redatores achavam mais interessantes para a vida social
e
cultural dos negros. Após o primeiro, outros se sucederam
na
seguinte ordem: A rua e
O Xauter, 1916; O
Alfinete, 1918;
O
Bandeirante, 1919; A Liberdade,
1919; A Sentinela, 1920; O
Kosmos,
1922; O Getulino, 1923; O
Clarim da Alvorada e Elite,
1924;
Auriverde, O Patrocínio e
O Progresso, 1928; Chibata,
1932;
A Evolução e A Voz da Raça,
1933; O Clarim, O Estímulo,
A
Raça e Tribuna Negra,
1935; A Alvorada, 1936; Senzala,
1946;
Mundo Novo, 1950; O
Novo Horizonte, 1954; Notícias
de
Ébano, 1957; O Mutirão,
1958; Hífen e Niger, 1960; Nosso
Jornal,
1961; e Correio d’Ébano, 1963.
Esse conjunto de periódicos que se sucedem durante quase cinquenta
anos influirá significativamente na formação de uma ideologia étnica do negro
paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento. Concentrando o
seu noticiário nos acontecimentos da comunidade, divulgando a produção dos seus
intelectuais nas páginas dessas publicações, aconselhando, orientando e
criando, mesmo, um código moral puritana para ser obedecido pelos negros, essa
imprensa “feita por negros para negros” marcou profundamente o pensamento do
negro paulista.
Esses jornais também serviram de veículo organizacional dos
negros. As discussões que se tratavam nas suas páginas, a colocação permanente
dos problemas específicos da comunidade,
as
denúncias contra o racismo e a violência através de fatos concretos, tudo isso
levou a que os negros de São Paulo fundassem o maior movimento político negro
no Brasil: a Frente Negra Brasileira.
Esses jornais, conforme já dissemos, não refletiam nas
suas páginas os grandes acontecimentos nacionais. Nada sabemos, pela sua
leitura, da Coluna Prestes, da revolução de 1930, do movimento de 1932 em São
Paulo, da revolta comunista de 1935 e de outros acontecimentos relevantes nesse
período. Há certa cautela tática, pois neles também não se encontram notícias
ou comentários sobre o movimento sindical, as lutas operárias, greves e a
participação dos negros nesses eventos. Também não se encontram críticas ao
governo.
Os seus dois jornais mais importantes, O
Clarim da Alvorada e A Voz da Raça,
tiveram papel saliente e significativo no despertar da consciência étnica do
negro paulista. O primeiro municiou a comunidade de dados e informações
preciosos para que o negro se autoidentificasse na sua negritude. O segundo foi
o órgão da Frente Negra Brasileira, movimento que marcou profundamente a
consciência do negro, e elevou o nível de tomada de sua identidade étnica.
A imprensa negra, embora criada e produzida para um público
segmentado, propagou-se para leitores diversos e, no período posterior à
abolição, destacou-se tanto no sentido de combater o preconceito racial em suas
múltiplas manifestações quanto para tentar afirmar socialmente os negros, seja pela
instrução, seja pela luta contra o que, para alguns, era tido como apatia.
Neste sentido, os periódicos da imprensa negra foram um instrumento para a
maior integração deste grupo
na
sociedade republicana das primeiras décadas do século XX.
Alguns desses jornais refletiam as inquietações de parte
da população negra e, num sentido mais amplo, tinham um caráter pedagógico e
instrutivo, pois, além do forte apelo político para a tomada de certa
consciência considerada adequada por seus editores, apresentavam em suas
páginas matérias relacionadas ao cotidiano de parte dessa população, o que pode
ter contribuído para o processo de formação de sua subjetividade. Além disso, a
divulgação de eventos do cotidiano – tais como festas, bailes, concursos de
poesia e beleza, que raramente apareciam nos periódicos da grande imprensa -
pode também ter contribuído para um processo de autorreconhecimento e construção
da identidade por meio da observação e identificação do seu patrimônio
cultural.
A preocupação com a educação é constante nesses jornais, assim
como a missão de combate ao analfabetismo:
Aos leitores
[...] o combate ao analphabetismo,
essa praga que nos fazem mais escravos do que quando o Brazil era uma feitoria;
[...]. Vamos, meus amigos um pouco de boa vontade, porque combater o
analphabetismo é dever de honra de todo brazileiro. Nós, homens de côr,
conscientes dos nossos deveres, para com a nossa muito amada patria, desejamos
que os homens, mulheres e crianças da nossa raça aprendam a ler para obterem um
lugar digno no seio da sociedade brazileira. (O Alfinete,
1919)
Ao lado da preocupação com o combate ao analfabetismo estava
a necessidade de lutar contra tudo aquilo que era considerado imoral para o
negro. Nessa perspectiva, inúmeras matérias de diversos jornais criaram um
código moral e divulgaram uma série de comportamentos que consideravam
modelares para o negro, e, ao mesmo tempo, condenavam outros tidos como
potencialmente perniciosos:
A preguiça
Segundo uma antiga máxima em que
está contida uma verdade profunda, é a preguiça a mãe de todos os vicios.
[...].
O homem que trabalha, é uma verdade
corriqueira não tem tempo disponível para engendrar cousas que prejudiquem a
outrem. [...].
Onde se encontram os preguiçosos?
Nos botequins, nas esquinas, pelas
ruas, a esmo ou junto nas mesas de jogo, completamente esquecido de tudo.
(FREITAS, O Progresso, 1932).
A crítica à preguiça e a outros comportamentos
considerados inadequados não deve ser entendida como sinônimo de uma visão
negativa dos próprios periódicos em relação à população negra. Tampouco deve
ser dela deduzida uma suposta vida desregrada por parte dos negros.
Considerando que esta população estava inserida em uma sociedade preconceituosa
que, a todo momento, associava ao negro características negativas, é possível
pensar que tais mensagens se constituíam, antes, numa forma de combate ao
preconceito e de integração social, tomando para si valores socialmente
valorizados também por outros grupos sociais. Cabe aqui retomar as palavras de
Robert Slenes: “A afirmação de que os escravos viviam em geral na
licenciosidade, na promiscuidade ou na prostituição conduz facilmente ao
argumento de que eles foram profundamente marcados por essa experiência”
(1988).
Nesse sentido pode-se entender que a valorização de
certos padrões morais vinculada nesses jornais funcionou naquele contexto como
uma estratégia de afirmação do negro enquanto sujeito que lutava por espaços na
sociedade.
As matérias, em geral, não estavam ordenadas em uma
sequência; encontravam-se dispostas arbitrariamente pelas páginas e, ao que
parece, a preocupação dos redatores era a de ocupar todos os espaços do jornal.
Os anúncios eram colocados geralmente na última página e, pela leitura dos
mesmos, pode-se perceber que muitos deles eram de comerciantes brancos, embora
os jornais não façam nenhuma menção ou diferenciação sobre isso. A respeito dos
anúncios, Miriam Nicolau Ferrara observou que: “Os anúncios publicados eram
pagos, contribuindo para manutenção do jornal” (1981).
O fator econômico dificultava o acesso e a circulação
destes jornais entre grande parte da população negra, embora não os impedisse
de modo definitivo. Correia Leite, fundador e
colaborador do jornal O Clarim da Alvorada,
esclarece que “ninguém comprava e nós dávamos os jornais gratuitamente. Pagávamos
o papel com nosso dinheiro e sempre tínhamos prejuízo”. (apud
Ferrara, 1981).
Uma característica comum em grande
parte desses jornais era a prescrição de condutas e o incentivo a determinadas ações:
Carta sem cor
Devemos nos preocupar menos com o
passado da raça, tratando agora de educal-a, preparando-a para as formidaveis
lutas de amanhã. O passado foi horrivel e o presente pessimo; que devemos esperar
do futuro? Tudo, se tivermos o livro por escopo; nada se continuarmos o culto
das tabernas! (FLORENCIO, O Alfinete,
1921).
Outros artigos procuravam lembrar a contribuição dos
negros na formação do Brasil. Assim,
pretendiam (re)afirmar a sua brasilidade e o seu nacionalismo, o reconhecimento
do seu trabalho para o desenvolvimento do país e do seu exemplo de luta:
O negro no Brasil não só devastou
florestas; andou a cata do ouro e de outros mineraes, plantou os primeiros pés
da rubeacea que nos deu toda riqueza, tudo quanto temos, elle, além de ser um
factor da formação da grandeza primitiva, - é o brasileiro que se não cança de
luctar com devotado amor, em todas as atividades humanas é o hercules das
forças que se enquadram a engrandecer os incontaveis factores da nossa nacionalidade
porque, é um brasileiro luctador e forte. (AGUIAR, O
Clarim da Alvorada, 1928)
Esse artigo foi publicado como parte das comemorações em 13
de maio, que há pouco havia se passado. Pode-se interpretar que Jayme de
Aguiar, ao lembrar-se da importância do trabalho escravo para o crescimento da
economia brasileira e da participação do negro no engrandecimento
da nação, pretendeu dentre outras coisas, reforçar no
leitor uma ideia de nacionalidade que estava atrelada a sua luta cotidiana. De outra
maneira, ser brasileiro estava relacionado a sua luta por espaços naquela
sociedade.
Algumas matérias apresentavam histórias de vida de negros
que traziam em suas trajetórias, embora distintas, aspectos comuns como a
origem, a determinação e o lugar social alcançado.
Essas
matérias procuravam, através dos exemplos, mostrar aos leitores negros a
possibilidade de ascensão social. Em outros termos, apresentavam biografias de
negros que, mesmo diante de todas as dificuldades advindas do passado
escravista, conseguiram superar a
sentença de submissão social a qual estavam condenados.
ENGº ANTONIO MARTINS DOS SANTOS
Em 2 de setembro de 1911 em Bom
Sucesso, estado de Minas, nasceu Antonio Martins dos Santos. De condição humilde,
sempre sentiu necessidade de trabalhar para vencer. [...] Antonio conseguiu
formar uma base sólida para seus estudos vindo, em 3 de fevereiro de 1928,
continuar sua instrução no meio mackenzista. [...]. Como estudante, soube
também vencer. Abraçou por ideal, o estudo da engenharia; especializou-se em eletricidade,
terminando o curso e defendendo tese em 19 de março de 1936. [...] Antonio
adormeceu
aqui, na madrugada do dia 24 de
abril de 1937, para acordar na região da vida eterna, onde recebeu a corôa de
gloria do Senhor, justo juiz. [...] lembramo-nos também do belo exemplo de
mansuetude e luta, de humildade e renuncia, que Antonio Martins dos Santos nos
deixou. (ANDERS, A Voz da Raça,
1937).
Segundo esse jornal, Antonio Martins alistou-se na Frente
Negra em 1932. “Em 1935, juntamente com outros elementos, fundou o curso de
formação social, e aí foi um dos mais brilhantes professores” (Souza, A
Voz da Raça, 1937). Foi membro do conselho da Frente Negra e redator
chefe deste jornal.
Antonio Martins provavelmente não era conhecido de grande
parte dos leitores. No entanto, ao descreverem nesta matéria a sua trajetória
de vida e sua lição de luta, os editores deste jornal possivelmente
contribuíram para a formação de um espírito mais combativo e de busca por
espaços naquela sociedade.
O jornal A Liberdade teve
o seu primeiro número publicado no dia 14 de julho de 1919, numa clara alusão à
Revolução Francesa, especificamente no 14 de julho de 1789, com a Queda da
Bastilha. Assim, o seu título é uma menção a um dos preceitos desse movimento:
a liberdade. Neste sentido, os redatores deste jornal procuraram publicar nos
seus primeiros números matérias que pudessem contribuir para o esclarecimento e
alargamento do conceito de liberdade.
Em suas duas primeiras edições no ano de 1919, traz uma matéria
relatando a história de vida de Luiz Gama:
Este era natural da Bahia, foi
vendido com outros escravos para o Rio de Janeiro, ahi foi elle comprado pelo
mercador de escravos da cidade de Lorena, Antonio P. Cardoso. Remettido a
cidade de Campinas, onde não encontrou quem o comprasse por ser bahiano, e
tendo aprendido a ler escrever e contar, dotado de rara intelligencia, em breve
tempo poude adquirir sua liberdade. (DOMINGUES, A
liberdade, 1919)
Compreender essa história implica lembrar a fama de parte dos escravos baianos, tidos como revoltosos e
“fujões”, o que se deve principalmente aos desdobramentos e repercussão da Revolta
dos Malês, ocorrida no ano de 1835 em Salvador. Partindo da premissa de que o
ato de ler não é um processo de passividade, e sim de interação, provavelmente
a leitura dos diversos artigos publicados nesses jornais para além da ideia de
moldar segundo os modelos e ideias que eram apresentados e/ou incentivados,
sinalizam para a possibilidade do reconhecimento de que era possível ao negro
almejar outros espaços naquela sociedade do que os comumente.
Alguns autores, como Clovis Moura e Roger Bastide, dentre
outros, que estudaram a imprensa negra, evidenciaram e afirmaram que esses
jornais tinham uma circulação restrita e que eram dirigidos a uma elite negra
letrada. Desta maneira ignoraram em suas análises outras possibilidades de
acesso e leitura desses jornais. Antunes Cunha, militante negro que escreveu
diversas matérias no jornal O Clarim da Alvorada,
explica que, a princípio, a circulação era restrita a um público letrado, fato
depois superado, pois “junto a muitos desses reunia-se gente sem estudo para
ouvir as notícias. Avó, pai sem leitura, comprava o jornal, para que os netos,
os filhos lessem para eles” (Cunha apud Gonçalves
& Silva). Assim, a leitura poderia ser ampliada para além dos segmentos
alfabetizados.
O Jornal Quilombo,
dirigido por Abdias do Nascimento volta-se para “ definir” o teatro negro” e
produções culturais outras também com o mesmo designativo. Nesse intuito
publica na edição de janeiro de 1950, número 5, parte do texto de Sartre, Orfeu
Negro, em tradução feita por Ironides Rodrigues, nome sempre
citado quando se fala das produções e do movimento negro nas décadas iniciais
do século XX.
Depois do Jornal Quilombo os
escritores e intelectuais negros dão continuidade à tradição de fundar grupos,
jornais e revistas como os Cadernos de Cultura da Associação
Cultural do Negro, Congressos de
Negro, Afro-Latina América,
Revista Tição em Porto Alegre, Jornal Abertura em São
Paulo, Jornal do Movimento Negro Unificado, o grupo Gens,
os Cadernos Negros,
a antologia Quilombo de palavras.
Extraído do livro: “Literatura Afro-Brasileira?”.
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